A Guerra do Caldeirão

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A primeira coisa que é válida de se observar é que mesmo antes de se concretizar uma experiência como a do Caldeirão, Cícero já vinha orientando José Lourenço, o beato do Caldeirão. Este é um Paraibano, homem de cor preta e origem obscura, que havia chegado ali no início dos anos de 1890, no auge das discussões sobre o milagre da hóstia que se transformou em sangue. Com o apoio do padre, é formado, pela primeira vez, num pedaço de terra arrendada por José, a primeira experiência de uma comunidade produtiva e religiosa de base familiar nos molde mais cristão-primitivo-camponês.

A primeira comunidade foi erguida num pedaço de terra no sítio Baixa d'Anta (propriedade de João Brito). Quando saiu de Juazeiro para o sítio, por volta de 1894, Zé Lourenço levou consigo a família, um grupo de romeiros e a missão, delegada pelo guru Padre Cícero, de formar uma comunidade ali na vizinhança do Crato. Cabia ao beato receber, naquele pedaço de terra arrendada, os desvalidos dos desvalidos. Para lá, Cícero enviava vítimas de perseguições, os que precisavam ser educados para o trabalho, e outros foram chegando porque ouviam falar de um lugar onde não tinha fome. José Lourenço era um exemplo de mansidão e humildade, pelo povo passou a ser conhecido por beato e conselheiro.

Não havia nenhum tipo de julgamento para a chegada ao pequeno arraial. O próprio Padre Cícero costumava mandar para lá cangaceiros arrependidos e assassinos e toda a sorte de gente. A única obrigação que tinham os pecadores era a de esquecer o passado e tibungar, de corpo e alma, na rígida moral sertaneja, na profundeza da penitência, no fundo do pote da fé cega e da empreitada agrícola coletiva.

Sem dar conta e desprovido de qualquer notícia do estrangeiro, a comunidade aproximava-se, no seu modo de produzir e espalhar fartura, eram como seguidores da cartilha de Karl Marx. Mas a fonte era outra: tão somente os princípios cristãos diluídos em potes e mais potes de sacrifício.

A fartura cooperativista do Sítio Baixa Danta era, no entanto, um retrato às avessas da política latifundiária. As mangueiras, laranjeiras, carás, hortaliças, lima e limão e até cafezais exibiam a força do trabalho coletivo.

Zé Lourenço, no entanto, sofreria um duro baque. Com a chamada “Guerra de 14”, como ficou conhecida pelo povo a “Sedição de Juazeiro”. O sítio foi invadido e saqueado por tropas do governador Franco Rabelo, que comandava, de Fortaleza, uma batalha contra os “marretas” do Cariri. Com seu comportamento manso não chegou a participar da Sedição, mas nesta ocasião teve um prejuízo enorme com a invasão das tropas de Franco. Mas passada a batalha, trabalhou e conseguiu reaver tudo.

Em pouco tempo e com muito suor coletivo, a fartura estava de volta ao sítio do beato. E com uma riqueza a mais. Padre Cícero, que sempre ganhava muitos presentes, tanto do povo como da dita elite nordestina, recebera um touro, raça zebu, do industrial Pernambucano Delmiro Gouveia, pioneiro em invenções têxteis no Nordeste, um progressista, comparando-se com a selvageria dos donos do poder da região. Batizado boi Mansinho, pelo seu temperamento, o animal daria muito trabalho dali para frente. Carregaria sobre as quatro patas uma carga de simbolismo que renderia complicações e desassossego para Zé Lourenço e sua gente. Arrobas e arrobas de devoção.

Até hoje não se sabe o que havia de lenda ou o que havia de verdade diante do boi. O certo é que, em pouco tempo, os boatos davam conta de um rosário de milagres. Até a urina do bicho era bebida para todas as curas, remate de todos males.

As narrativas que ficaram são muitas. A mais comentada: certo dia, um cabra-macho de Pernambuco, na vizinhança do Cariri, fez uma promessa para conquistar uma difícil donzela. Moça linda, a mais caprichosa das morenas, daquelas que areiam os copos de alumínio da casa e se debruçam na janela à espera de um trovador. Cabocla para poucos.

O rapaz conseguiu o que ansiava, um tanto com respeito um tanto com a gabolice possível, pobre Cândido. Pegou um bom feixe de capim, fresquinho, ainda com sereno da manhã, e levou de presente para o touro, como havia confessado a Deus na promessa ou no sonho. Quando deitou o capim na frente do bicho, só notou estranheza e alvoroço. O boi recusou a oferta.

Dias depois, descobria-se que o capim havia sido furtado de terra alheia. Começava aí a fama de santo de Mansinho. Virtuoso, só aceitava o que não embutia nenhum dos pecados escritos nas tábuas sagradas.

Adorado pelos fiéis, motivo de outras tantas promessas, até as fezes do boi eram utilizadas como remédio ou devoção. Os jornais do Nordeste, por maldade ou exotismo noticioso, ajudavam a fermentar ainda mais os feitos bovinos. Em pouco tempo, “os milagres do boi Ápis” reforçavam a fama do Juazeiro e seus arredores caririenses como um antro de loucos e perigosos fanáticos. A síndrome de Canudos , episódio ainda fresco no imaginário do poder dos republicanos do Brasil Oficial, dava letras graúdas aos acontecimentos que lembrassem, de longe ou de perto, o arraial de Antônio Conselheiro.

O fato foi tomando conhecimento nacional. Mesmo não tendo nada a ver com a divinização do Boi, o beato foi intimado por Floro que não queria ver o nome do Padre Cícero, mesmo ele não sendo mais pároco local, maculados pelo acontecido.

A primeira preocupação de Floro Bartolomeu era desfazer a “lenda” do boi. E partiu para todo tipo de crueldade. Mandou a sua polícia açoitar quem propagava histórias sobre Mansinho, impôs aos penitentes a queima de suas vestes e demais objetos usados na ordem, mandou matar o boi e ainda deu um castigo de prisão por duas semanas a Zé Lourenço.

O beato também foi obrigado a provar da carne de Mansinho. “O negro, supondo exata a notícia, no terceiro dia apareceu na minha residência. Foi quando o conheci pessoalmente. Mandei prendê-lo, e, apesar das suas declarações, dele obtive a promessa de ir morar no Juazeiro, para evitar os boatos”, bordejou Floro, em um discurso no plenário da Câmara Federal, onde exercia o mandato de deputado, em 1923. Ele queria afastar de Juazeiro e do Padre Cícero qualquer sombra de aliado de fanáticos e cangaceiros. Tudo para continuar o seu reinado político no vale do Cariri.

O mais importante de todo o caso é o comportamento de Cícero, que viu Floro maltratar Lourenço, matar o boi na sua frente e impedi-lo de voltar a Baixo da Anta, e só depois de 18 dias de prisão, foi que ele intercedeu a favor do beato. O nome de Cícero não sai abalado, para a comunidade ele deixou que tudo aquilo acontecesse com José para que Floro e os outros poderosos da Região tivessem ali um exemplo de vida, de que um santo sem culpa provou sua inocência no sofrimento, semelhante a Cristo. Para os demais ficou claro que Cícero não apoiou o Beato deixando-o sofrer nas mãos de Floro. E mais, Cícero impediu uma sindicância à Juazeiro e a comunidade, pois sabia que seria desagradável e poria fim a Baixo d'Anta.

Volta José Lourenço, e em pouco tempo os líderes vêem naquele local algo subversivo a ordem. Ali, o beato nutria nas pessoas a idéia de que não haviam dominado nem dominadores e que o fruto do trabalho deveria ser dividido por todos.

Desejosos de se verem livre do beato, ou por outra razão o dono do Sítio Baixo d'Anta, um tal João de Brito, vai vender a propriedade. Pede o terreno então ao Padre Cícero, que sempre funcionava como um intermediário, um conciliador entre o povo e os coronéis da região. Sua intenção era abafar possíveis conflitos agrários. Com a venda, inclusive da parte arrendada a José, dar-se fim a primeira experiência de socialismo cristã da região.

Ainda em 1926, quando Floro Bartolomeu foi chamado para organizar pela Segunda vez o Batalhão Patriótico, desta vez para defender o estado contra a Coluna Prestes, ele já estava um tanto abatido pela Angina. Floro estava em Campos Sales defendendo o Ceará da Coluna, quando em um confronto com o Capitão Polidório, do Batalhão de Caçadores de Minas Gerais, que estava lá para ajudar o Batalhão Patriótico, teve uma crise que agravou o quadro da doença. Impossibilitado de Permanecer no campo de batalha, volta a Juazeiro onde é providenciado um trem para que o levasse a Fortaleza e de lá seguiria para o Rio de Janeiro. Ainda houve um desentendimento com Isaías Arruda, coronel forte de Missão Velha, que dentro do trem onde Floro estava, cobrou sua parte por ter estado no Batalhão. Mais uma coisa para irritar Floro.

Em Fortaleza ficou hospedado na Escola de Aprendizes Marinheiros, de onde seguiu para o Rio. Estava tão tenso que num encontro com o então presidente do Estado, Moreira da Rocha, depois duma discussão, ameaçou que se voltasse vivo do Rio voltaria depô-lo do Governo. Com a doença bem agravada, mal conseguiu chegar ao Rio e morreu. Foi sepultado com honras de general. Dava-se fim a história do fenômeno político de Juazeiro, o Doutor Floro Bartolomeu da Costa. Estava morto principalmente na mente dos populares, que sempre tiveram o Padre Cícero como líder.

Neste meio tempo, sem terra e sem nenhuma indenização, José Lourenço e os outros seguem para um local que Cícero destinou para eles, O distante Sítio Caldeirão, ou o Caldeirão dos Jesuítas, que servira de refúgio para seguidores da ordem, também conhecido depois como Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, aos fiéis. Com quase mil hectares, a área localizada no município do Crato, no pé da Serra do Araripe, seria em breve um próspero canteiro.

Lá o Beato foi perfeito, seu espírito empreendedor fez do Caldeirão um local produtivo. Com a morte de Floro e o apoio explicito de Cícero, o sítio prosperava como nenhum outro e com pouco tempo se fez notoriamente algo maior do que Baixo d'Anta.

A autoridade de José ia crescendo, ele casava, batizava e julgava os problemas do sítio. Por isso faz-se essa comparação entre José e Antônio Conselheiro. Talvez o comportamento no final seja o mesmo, mas o que os levou a isso é que difere. O Caldeirão basicamente, é um movimento onde a religião permeou o social, diferente de Canudos, onde o social permeou o religioso. Ou seja, o motor de tudo em Caldeirão é a religião, a justificativa inicial do movimento era a religião, a orientação era a religião, o próprio senso comunista, socialista, adivinha de um cristianismo primitivo. A religião em Canudos serve como algo que aproxima as pessoas, mas o que as trouxe ali fora a crítica social, não que no Caldeirão não exista uma crítica a sociedade, e não que em Canudos a religião não seja importante, mas existe essa diferença decisiva para analisar o Caldeirão.

Para alguns historiadores e sociólogos, uma comunidade nos moldes socialistas; para outros tantos, uma legião messiânica à espera de um Dom Sebastião salvador, como pregavam, desde a segunda metade do século XIX.

O historiador cearense Francisco Régis Lopes Ramos, autor de vários livros sobre este e outros episódios marginais da história do Nordeste brasileiro, avalia que a fé foi um grande impulso para a ida dos fiéis ao Cariri, mas não uma tentativa de fazer o céu na terra. “Com isso podemos inferir que, de uma certa forma, o Caldeirão significa(va) um movimento social de contestação pacífica à situação dos sem-terra”, conta. “Era o trabalhador provando que era possível viver bem do seu próprio trabalho”, relata em “Caldeirão - um Estudo Histórico sobre o Beato José Lourenço e suas Comunidades”.

Coube ao potiguar Severino Tavares, de semblante que lembrava Antonio Conselheiro, carregar nas tintas messiânicas do Caldeirão. Com a sua imagem e gestos de pregador do fim do mundo, falas intermináveis carregadas de parábolas e revolta social, Severino peregrinava pelos sertões do Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, mas sempre voltava para o Cariri, aonde chegou no começo dos anos 30.

Mais discreto Zé Lourenço se enfiava no trabalho e nas orações.

A fama do arraial do Cariri, no entanto, despertava ódios e versões os mais diversos. Tropas getulistas da chamada Revolução de 1930 foram ao local e saquearam e destruíram todo o sítio. O gado foi tangido, bodes, cabras, ovelhas, jumentos e cavalos tiveram o mesmo destino; as plantações foram pisoteadas. Para os ditos “revolucionários”, Zé Lourenço e a sua comunidade representavam um foco de resistência armada no pé da Serra do Araripe.

A destruição fora grande, mas o beato, que havia se protegido dos invasores em locas de pedra da região, estava vivo. Era o bastante para começar tudo outra vez.

A fartura da comunidade era tanta que, durante a seca de 1932, uma das muitas terríveis que abateu o Nordeste, centenas de desvalidos correram para o Crato. Foram recebidos com comida, trabalho e orações pelo beato. Naquele momento, os fiéis dominavam até mesmo técnicas primárias de irrigação, o que permitia multiplicar a fartura da irmandade do Caldeirão, ou a Santa Cruz do Deserto, como eles se autodenominavam. Neste tocante, como em Canudos, Caldeirão fora à denominação feita pelo governo e a imprensa. Para os crentes, eram respectivamente, o “Belo Monte do Conselheiro” e a “Santa Cruz do Deserto do beato Zé Lourenço”. Coincidentemente, ambas as experiências de coletividade de trabalho no campo, baseados na religiosidade popular teriam o mesmo fim, à bala.

No Ceará, durante a seca de 32, o governo, como sempre incompetente para o mais antigo dos dramas dos nordestinos, montou seis “campos de concentração” que abrigavam a horda de miseráveis. No Crato mesmo havia um desses currais de arame farpado por onde passaram cerca de 40 mil famintos. A intenção das autoridades era evitar que as doenças contagiosas, se espalhassem para toda a população.

Não se tem a mínima notícia sobre o número de nordestinos desejados ali.

Em 20 de julho de 1934 morria o Padre Cícero Romão Baptista, aos 90 anos. Morreu, não; para os romeiros, “meu Padim viajou e deixou Juazeiro sozim”. Com a “viagem” do líder religioso, Zé Lourenço passou a ser visto como o sucessor do padre Cicero.

Discreto, a mais sossegada das almas, o beato não havia reivindicado o posto de sucessor do Padre Cícero; muito menos perseguido tal patente. Mas a folha de serviços prestados e o próprio silêncio diante até mesmo de injustiças, como a sua prisão, consagraram-no como o herdeiro natural do “santo” do Cariri.

Nesta época, a comunidade possuía cerca de 3 mil pessoas, fala-se em mais 3 mil, de flutuantes que recorriam ao Caldeirão para resolver as necessidades de sempre, fome do estômago ou do espírito. Comiam, oravam e depois voltavam para as suas casas. “Às vezes o beato ia até as roças puxar benditos e incentivar o trabalho, que tinha jornada de oito horas, com intervalos para o almoço e a merenda. A produção era armazenada em um grande prédio construído perto da barragem do açude e de lá repartida, através de Isaías, espécie de secretário do beato, com os chefes de família, conforme as necessidades”, relembrou o jornal de resistência “Nação Cariri”, em 1982, comandado por Oswaldo Barroso e Rosemberg Cariry, este último autor de um documentário que iluminou o assunto, página sempre condenada às trevas e à clandestinidade da história oficial.

Com muita gente a chegar, o arraial despertou a ira da elite. Para o poder político sustentado por coronéis, a Igreja Católica e o Estado. Era a paranóia de uns novos Canudos. Associados ao temor do comunismo, como relata o historiador e advogado Airton de Farias. Este temor viria a enquadrarem e prenderem como bolchevique o pregador Severino Tavares, que pela origem Potiguar, Tavares foi acusado de ter participado da fracassada Intentona Comunista em Natal, no ano de 1935, e de ser um “agente de Moscou” infiltrado entre os camponeses do Caldeirão.

Além do terror vermelho, o terrorismo moral. A Igreja e as autoridades do Ceará e de Pernambuco espalhavam entre os católicos boatos sobre o comportamento desregrado do beato. Dizia-se que Lourenço possuía um harém, com muitas beatas aos seu inteiro dispor sexual. As narrativas davam conta de uma versão sertaneja de Sodoma & Gomorra. Devido ao voto de castidade, o padrinho José, como era tratado pelos romeiros, sequer havia casado.

O pior golpe que sofreria da Igreja, porém, viria da aliança entre a Ordem dos Salesianos e a Liga Eleitoral Católica, a LEC, espécie de partido de Deus dedicado a puxar votos dos grotões para candidatos ultraconservadores.

Mesmo com as perseguições, como o Caldeirão continua crescendo, e com a morte do padre Cícero em 34, o movimento duplicou. O beato passou a contar com a ajuda de Isaías e a partir daí começam as romarias ao Caldeirão, fato que fortaleceu e muito José Lourenço. A experiência dava certo e os líderes locais não podiam suportar mais aquilo. Com a morte de Cícero, as terras do Caldeirão foram deixadas para os Salesianos, e como acreditava Ralph Della Cava, que "o clérigo tenha designando como seus herdeiros uma congregação italiana, cujas ligações íntimas com o papado devem ter-lhe aparecido como o último e único modo de voltar ao sacerdócio”. Esta hipótese plausível, contudo ainda aguarda confirmação, em contraste com o fundamento explícito de dar sua fortuna aos Salesianos, a fim de que abrissem um colégio de formação agronômica em Juazeiro”.

O testamento do padre Cícero é de 1923, ele destinava a maior parte do seu patrimônio aos Salesianos. Nesse lote estava incluída a fazenda Caldeirão. Com a morte do padre, os herdeiros queriam expulsar imediatamente os camponeses, os fanáticos e comunistas, no dizer oficial. O padre poderia tê-lo modificado pelo menos para fazer de José Lourenço herdeiro das terras do Caldeirão. Talvez não imaginasse que os Salesianos deixasse José permanecer no Sítio, uma vez que era extremamente produtivo. Mas não aconteceu assim. Sem a proteção de Cícero, o Caldeirão foi entregue a um destino cruel.

Com a ajuda da Diocese do Crato e dos coronéis, que se queixavam de perder a mão de obra escrava para o sítio de Zé Lourenço, os Salesianos recorreram ao governador Menezes Pimentel. Os jornais do Ceará já vinham na mesma Tonica em suas noticias sobre o lugar já havia bom tempo. Em lugar da monarquia, fantasma dos republicanos, o comunismo, assombração de bispos e oligarcas.

Apenas um articulista, José Alves de Figueiredo, farmacêutico do Crato e proprietário de uma fazenda vizinha do Caldeirão, tive a coragem de defender o beato, a quem tratava como um rude apóstolo do bem. “Tendo sob a sua proteção cerca de 300 pessoas, que ele veste e alimenta, sua casa é uma colméia. Homens velhos e moços, brancos e pretos, moças e velhas, ao aproximarem do beato José Lourenço, se descobrem, com grande respeito, ajoelham-se aos seus pés e beijam-lhe as mãos”, escreveu, em manifesto de solitária coragem publicado na edição de 7 de junho de 1934 do jornal O Povo, de Fortaleza.

Espionado pela Polícia Militar cearense, comandada pelo capitão do Exército Cordeiro Neto, o beato Zé Lourenço recebe com banquetes o capitão José Bezerra, escalado pela PM para o serviço de espionagem da comunidade. Bezerra chegara ao sítio, em meados de 1936, travestido de empresário desejoso de explorar a oiticica, uma das árvores brasileiras mais ricas em óleo, da região. O resultado desta visita foi à entrega ao comando da polícia, de um relatório que desenhava o Caldeirão como um misto de inferno e sucursal de Moscou.

Estava decidido. O avanço das tropas oficiais sobre o Cariri era questão de dias.

No começo da noite de 9 de setembro de 1936, um batalhão, armado com fuzis e metralhadoras, marchava de Fortaleza para o município do Crato. O entusiasmo militar era embalado por cantigas. Depois de quase um dia de viagem, os militares chegavam ao Caldeirão. Ainda de longe, enxergavam “formigas negras” a descer dos morros, segundo relatos do tenente José Góes de Campos Barros publicados pelos jornais à época.

“Com rezas bravias num curral, homens, mulheres e crianças se comprimiam, uns contra os outros, olhando-nos com ódio e temor; a severidade dos semblantes, a atitude reservada e a uniformidade negra das indumentárias, não deixavam de emprestar à cena uma grandiosidade lúgubre e triste, como uma experiência de catástrofe”, narrou o tenente. “Apenas, num contraste irônico, quatro loucos, amarrados a um canto, sorriam sem procurar compreender. Parecia o inferno; e eu me lembrei de Dante”, descreveu o militar, amparado na “Divina Comédia”.

A tropa fez uma revista em cerca de 400 casas. No primeiro momento, só uma moça ergueu a voz em protesto contra a invasão. “O primeiro protesto partiu de uma mulher”, observou o tenente José Goés.

A tropa se dirigia para a casa do beato.

A decepção foi grande. Zé Lourenço, mato adentro, havia tomado o rumo de um esconderijo perto de umas pedreiras na Serra do Araripe.

A tropa de militares passou a dar ordens. Todos, entre 700 a mil pessoas encontradas nas mais de 400 casas do arraial, teriam que voltar para as suas terras. Chegou a impressionante conclusão de que 75% dos habitantes eram do Rio Grande do Norte, Estado que havia enfrentado estiagens mais severas em período recente, 20% de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Maranhão, Piauí e apenas 5% de cearenses. O “cosmopolitismo” de nordestinos mantém-se como característica da população do Cariri até os dias que correm, ainda por causa das romarias.

Os casados, com os filhos teriam o prazo de cinco dias para saírem da área. Os solteiros, apenas três dias para juntar os pertences e cair no mundo. A Polícia ofereceu passagens de trens e de navio. Todos os seguidores do “preto sagaz” como o beato era conhecido pelos militares, rejeitaram a oferta. Um quase uníssono “não” balançou a caatinga. “Peguem os seus bens e retornem aos seus lugares”, diziam os comandantes da tropa.

“E, fato singular, ninguém tinha bens a conduzir. Tudo que ali estava, diziam, era de todos, mas não tinha dono”, relatou o tenente José Goés, impressionado com o espírito coletivo daquele “Estado Comunista e teocrático”, como registrou nas suas anotações.

A tropa, pois, resolveu partir para a ação e a tentativa de humilhação total daquele do povo que seguia o beato. O capitão José Bezerra, o mesmo que havia espionado a comunidade meses atrás, sabia que o cavalo Trancelim era o animal mais querido do lugar. Passou a maltratá-lo até a morte. Teso, o cavalo teve o seu couro retirado com requintes de perversidade. Tudo para deixar o Caldeirão, outrora território do boi Mansinho, destroçado, sem símbolos, pele, e muito menos auto-estima.

A partir daquele episódio, a barbárie. As casas foram incendiadas, os armazéns de algodão, cereais e legumes foram saqueados.

Maria Vieira, uma “moçona bonita do Piauí”, no dizer de Maria Gurgel, em depoimento ao historiador Régis Lopes, fez daquele inferno o seu juízo final. Sob o temor de ser carregada pelos militares para Fortaleza, onde perderia, segundo as ameaças, a sua virgindade, Maria Vieira se ensopou de querosene da tradicional marca “Jacaré”, e tocou fogo no corpo ao pé do cruzeiro do sítio. As labaredas cobriram-na em segundos.

Ainda se estrebuchando ao pé da santa cruz, um sargento indagou se Maria estava satisfeita com o que fizera. Com a cabeça, ela disse que sim. “Você quer acabar de morrer de tiro ou de cacetada”, perguntou o mesmo militar. “Do que vocês quiserem me matar”, disse a moça e pouco depois morreu.

A tropa, formada por pelo menos 200 homens, enxotou os fiéis, que se refugiaram nas encostas da Serra do Araripe, entre a Mata do Cavalo e o Curral do Meio. Muitos, não se sabe quantos, foram presos e conduzidos, amarrados, para a cadeia em Fortaleza; outros fugiram para Juazeiro ou para as suas terras de origem. A partir daí, a polícia se apropriou da maior parte dos bens do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. “Que se combatesse o beato, sob o pretexto que o mesmo era um chefe de fanáticos, admite-se”, publicou, em editorial, o jornal O Povo de 11 de novembro de 1936. “Vender-se, porém, aquilo que de direito lhe pertencia e aos seus romeiros, não parece justo nem razoável, mesmo porque o Estado é que terá de reparar depois o prejuízo resultante da mencionada transação”.

Até as portas da igreja do sítio foram vendidas. Ironicamente caíram nas mãos do dono do maior cabaré e “casa de mulheres de vida fácil” do Cariri, o senhor José Alves. Preço das portas: 400 mil réis.

Meses depois, já em 1937, o espírito do Caldeirão ainda estava vivo. Mas dividido. De um lado, o Potiguar Severino Tavares, alma desassossegada, que tinha como base a comunidade do Cariri, mas vivia a pregar sertão afora. Seus sermões juntavam a moral reguladora da família com ataques à ordem estabelecida das oligarquias. “A roda grande vai correr dentro da pequena”, dizia, na imagem para indicar a mudança dos lados entre ricos e miseráveis, frase hoje atribuída ao Padre Cícero entre os religiosos dos sertões do Nordeste.

Severino havia sido preso várias vezes, a pedido dos coronéis ou da Igreja. Destemido, pregava a resistência armada para reerguer a comunidade.

Do outro lado, sempre na paz ou no sossego, Zé Lourenço queria uma reconstrução negociada para a volta ao Caldeirão. No primeiro momento, recorreu à Justiça para tentar reaver os bens assaltados pela Polícia Militar.

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